O Refúgio dos Anjos Negros
O Refúgio dos Anjos Negros - Excerto Do Livro
Capítulo Um
Astria Brin temia, acima de tudo, vir a ser abandonada por todos. No entanto, os seus próprios atos levaram a que isso precisamente acontecesse.
O seu tio preferido, que era bombeiro, dissera-lhe para nunca mostrar medo, tal como ele nunca mostrara, embora as chamas que ela ateara o tivessem queimado até ficar negro e encarquilhado. Nem mesmo a morte da sua querida avó materna, no mesmo fogo, e da sua ama (querida ama!), tinha impedido a jovem Astria de enfrentar com coragem os comentários sussurrados em toda a escola e publicados nos jornais, sorrindo face à perda sofrida. Perto da mansão cuja branca fachada de outrora estava agora enegrecida devido às cinzas, os pais usaram a sua vasta fortuna para enterrar as vítimas de forma rápida e dispendiosa, numa tentativa de enterrar também aquele dia terrível. Sabiam quem tinha ateado o fogo, mas, como frequentemente faz quem tem filhos criminosos, encobriram tudo e fingiram que nada se passara.
Astria, dez anos depois, lutava ainda contra os fantasmas do passado. Por isso, quando os leões de pedra da Centre Street Bridge a perseguiram até casa, babando-lhe avidamente os recantos mais escuros do armário, ela considerou-os sinais da vingança levada a cabo pelos ossos retorcidos e queimados tempos atrás. Patrick ajudou-a a encarar de forma mais racional aqueles monstros, assim se revelando à altura do seu papel de amante e de confidente, cúmplices ambos na procura do esquecimento. A culpa que sentia aprisionava-a, tal como a possibilidade de um futuro dominado pelo remorso. Quanto a ele, era uma presença niilista.
Então, Astria, sentou-se e encarou o perigo. Perto de si, sobre a cama de ripas de madeira, com o peito coberto pelos lençóis brancos e macios, o companheiro, Patrick Ferguson, ressonava suavemente. Os pelos louros da barba subiam e desciam ao ritmo da respiração. Astria sabia que, nas profundezas da noite, Patrick lhe daria tão pouca ajuda física quanto a que dava durante o dia, embora o seu corpo fosse magro e forte, e as suas proezas sexuais admiráveis. Ela estremeceu e olhou de relance para os números luminosos do relógio ao lado da cama, que derramavam para o chão um brilho azulado - 3:42. A jovem preparou-se mentalmente para o que a esperava. Um rugido abafado serpenteou pelo quarto. A luz azul iluminou-lhe a face magra, tensa, atenta. A porta do armário rangeu, abrindo-se e revelando grandes órbitas amarelas, que brilhavam e piscavam. Os pés de Astria alcançaram o chão e ela fechou a porta.
"Sabes,” disse Patrick, na manhã seguinte, enquanto caminhavam em direção ao comboio, “alguns alucinogénios podem pôr leões nos armários das pessoas. Isso explicaria os pesadelos.”
“Não são pesadelos e eu não tomo alucinogénios. Vejo os olhos deles. Oiço o seu rugido. É como se tivesse sido o Stephen King a fazer os armários do nosso quarto,” disse Astria.
O clarão de um fósforo iluminou as mãos de Patrick. Este inalou, aspirando o fumo doce. “Nunca dei por eles.”
Passaram por baixo dos verdadeiros leões, autênticos guardas da Centre Street Bridge. No regresso, caminhariam de novo sob os leões. Astria aconchegou ao corpo o casaco grosso e sentiu um arrepio. “As pessoas não olham para cima. Nem mesmo quando caminham. Os leões já aqui estavam antes de Moisés ter descido a montanha. Ninguém os vê e perseguem-nos até casa.”
Patrick pegou-lhe na mão e baloiçou-a, percorrendo com a outra o seu próprio longo cabelo louro e a barba suja. “Andas a ler demasiado Edgar Allan Poe. Poe tomava ópio, ou qualquer coisa do género. Tu és minha, miúda, não tomas drogas, ouviste? Eu sou o único viciado aqui e, mesmo assim, nem sempre temos dinheiro para comprar erva. Somos estudantes pobres e, se queres vir a ser uma advogada como o teu pai, não podes ser apanhada.”
O passeio fazia uma curva no sentido ascendente em direção à estação de comboio. Um nevoeiro fino cobria os pilares da ponte, dando ao granito uma cor prateada e refletindo as tonalidades rosa e cinzentas de este, assim como o brilho ténue do sol que se esforçava por romper as nuvens.
“Adoro Edgar Poe,” disse Astria. “A minha ama, ensinou-me a ler e aposto que a minha primeira palavra foi ‘nevermore’.”
“Só os meninos ricos é que têm amas. Ótimo, estamos em cima da ponte.”
A névoa pingava do nariz enorme de Patrick, escorrendo-lhe para a boca expressiva, até chegar à barba. Astria seguia atrás dele.
“Nunca pedi para nascer rica,” disse ela.
Patrick deu uma gargalhada. “Eu nunca pedi para nascer.”
“Não fazemos vida de ricos.” Astria encolheu os ombros. Ele puxou a barba e fez uma careta. O dinheiro era uma barreira entre eles e, ao mesmo tempo, um laço que os unia.
“Graças aos teus pais, que me odeiam. Pensam que sou um mendigo e que vivo à custa do dinheiro deles, uma espécie de estudante alcoólico profissional que nunca vai conseguir acabar nada. E estão certos.” Riu ele.
“Podes provar-lhes que estão errados,” respondeu-lhe.
O rio fazia um barulho sibilante. Apanharam o comboio para o campus onde estudavam. Assobiando, Patrick foi para a aula de economia.
Astria gostava muito das aulas de fotografia, a sua verdadeira vocação, mas apreciava também os estudos na área do direito, pelo que aproveitava o tempo livre para pesquisar velhos casos na biblioteca, assim se preparando para o ano seguinte. A sua amiga Ingrid estudava no cubículo ao lado, no meio de uma confusão de textos espalhados pelo chão e por baixo da cadeira, o computador aberto, enquanto os dedos voavam pelas teclas, investigando a história da Alemanha. Ingrid era uma valquíria robusta, sem medo de nada e capaz de enfrentar sozinha, se necessário fosse, os monstros do inferno. Era uma boa amiga, pensava Astria, assim como a cadela que sempre a acompanhava, muito diferentes de Patrick e de Goliath, o pequeno cão de ambos. Em casa, não tinha ninguém que a protegesse e, no entanto, sem dúvida: Ela. Não. Tinha. Medo.
Para lá das balaustradas que rodeavam a livraria, no espaço molhado que protegia a cidade do rio, os leões de pedra, encolhendo-se sobre os pilares da ponte e escondidos por trás de uma cortina de chuva, de pequenos flocos de neve e de… esperavam.
Capítulo Dois
Ingrid levantou-se cedo, naquela manhã, e vestiu roupas quentes, para ir passear a sua golden retriever, Fergie, no pequeno parque perto de casa. Pararam por momentos, no início da colina, enquanto a cadela urinava para cima de um arbusto coberto de branco. Depois, continuaram até às margens do rio Elbow, enquanto Fergie enfiava o nariz entre a vegetação gelada que ladeava o caminho. Ingrid observou as brumas cinzentas que rodopiavam perto do rio. Estranhamente, estas pareciam vivas. Deslizaram até perto dela. Ingrid continuou pregada ao solo gelado, enquanto a cadela farejava o chão, indiferente ao nevoeiro.
Havia algo escondido atrás do fantástico remoinho cinzento, embora este fosse quase totalmente opaco. Parecia imobilizado pelos montes de neve, erguendo-se, de repente, perto de Ingrid e da cadela. Ela permaneceu imóvel.
Uma voz ribombou no nevoeiro. “Ei, companheira! Então, maldita!” Em seguida, ecoou um longo grito de regozijo.
Já ninguém falava assim. “Quem és tu?” Perguntou Ingrid. O nevoeiro rodopiou mais perto, sobrevoando as margens do rio e a brancura do arbusto gelado e fazendo com que o sangue de Ingrid lhe abandonasse os órgãos vitais e se concentrasse todo nas extremidades do corpo. Tentáculos gelados apertavam-lhe o cérebro e o estomago transformou-se num bloco de gelo.
“Sou o Valdemar de Harlem e voltei para procurar a minha Madeline.”
Ingrid reconheceu os nomes familiares da literatura. “Madeline da Casa de Usher?”
“Ei, companheira, ela mesma. Voltei para a procurar na Casa de Usher.”
“Ruiu.”
Ingrid, coberta pelos cristais de gelo do denso nevoeiro, tremia, incapaz de encontrar a cadela, incapaz mesmo de distinguir os próprios dedos congelados, que erguia à altura dos olhos abertos. O nevoeiro envolvera tudo o que se estendia dali até à margem do rio e ela não vislumbrava qualquer caminho por onde pudesse seguir. Lembrava-se de que o corpo de Valdemar de Harlem tinha ficado em decomposição durante meses após a morte deste. Falava, portanto, com um homem morto de uma das histórias de Edgar Allan Poe.
“O que aconteceu a Roderick?” Perguntou Ingrid. Ela fazia parte da Sociedade de Poe, no campus, tal como Astria, Patrick e mais alguns amigos chegados, e todos conheciam bem as histórias, incluindo esta. Aquele homem, Valdemar de Harlem, fora morto e hipnotizado, o que o impedira de libertar o espírito até, muitos meses mais tarde, este conseguir desprender-se. Tratava-se de uma história mórbida, pelo que Ingrid teve um arrepio, até porque a manhã se tornara ainda mais fria e húmida.
Agora, a voz ecoava cavernosa e próxima. “Todos mortos, mortos, mortos e em decomposição, como o hipnotizador fez comigo, mantendo-me vivo e em transe durante todos aqueles meses depois da minha morte. Eu estava morto como o road kill. Manteve-me vivo num terrível transe hipnótico, embora o meu coração e o meu cérebro tivessem deixado de funcionar meses antes. Decomposição imediata, como o road kill, minha senhora.”
“Como, como é que sabes do road kill?” Ingrid estremeceu, desejando encontrar-se em qualquer lugar longe dali; sim, em casa, no calor da cama, onde poderia acordar em qualquer momento daquele terrível sonho.
“Estamos no século vinte e um, minha senhora, a séculos e centenas de quilómetros da minha sepultura.”
“És o próprio Poe?” Ingrid ganhou coragem, lembrando-se dos seus antepassados vikings e da enorme curiosidade que sempre a acompanhara. O nevoeiro redemoinhou e adensou-se. Um longo gemido brotou das entranhas do rio.
“N-n-ão, maldita, mas Poe criou-nos e deixou-nos nesta casa de loucos que é a memória do rio.”
Ingrid olhou em volta, em busca de ajuda, mas não viu ninguém. Vislumbrou apenas a cadela, escondida atrás dos arbustos esbranquiçados. “Porquê aqui, em Calgary?”
“Ele enlouqueceu, alternando essa loucura com momentos de horrível sanidade mental.” No nevoeiro gelado, uma forma mexeu-se, aproximando-se, até aparecer um homem. Tinha um rosto medonho e olhava maliciosamente para Ingrid. De repente, cuspiu no ar gelado. As gotas transformaram-se em cristais de gelo e precipitaram-se para o chão.
“Tu não és real,” disse Ingrid. Chamou a cadela e Fergie respondeu de um local ali perto, galopando depois ao encontro da dona, através do ar pesado e cheio de lamentos, enquanto Ingrid se encolhia dentro da parca e do cachecol, numa tentativa de se aquecer. Agarrou com força na coleira do animal.
“Vamos, Fergie,” disse, enquanto a cadela ladrava para aquela aparição. Deu um puxão à correia, arrancando-a das mãos de Ingrid.
“L-l-inda cadelinha,” o horrível homem, enquanto dizia palavras sem nexo, mudou de forma mesmo à frente delas.
“O nome que o autor me deu é Pluto,” disse. “Tenho nove vidas. Vou chacinar-vos.” Inclinou-se para a cadela.
“Não!” Ingrid libertou-se do feitiço que a dominara, algo pouco habitual para ela, que nunca perdia o controlo e comandava sempre qualquer situação. “Não toques nela, seu, seu espectro. Não podes magoar-nos. És apenas um livro. És uma história. Este nevoeiro não passa de um sonho e tu és menos do que um sonho.”
A golden retriever rosnou, abocanhou a perna do fantasma e, abanando a sua macia cabeça amarela, atirou Valdemar de Harlem ao chão. Atirou-se, de imediato, ao coração do fantasma. Este era apenas uma entidade no meio do denso nevoeiro e por isso podia ser destruído. Na imaginação de Ingrid, o fantasma controlava o momento presente, que assim se lhe escapava como sangue que pinga de uma ferida, e o seu próprio sangue correu mais espesso e mais frio perante a voz daquele espectro. Teria fugido, se a cadela, com o seu instinto animal, não tivesse reconhecido a verdade e arrastado os ossos em decomposição para o nevoeiro do rio.
“Era uma vez uma meia-noite terrível, vagueava eu fraco e cansado...” No nevoeiro, Valdemar contorcia-se como um verme. A cadela dilacerava as entranhas do fantasma, rosnando enquanto uma espuma branca lhe escorria das mandíbulas e sangue, negro como alcaçuz, manchava o chão.
“Anda, Fergie. Já chega.”
Ingrid encontrou coragem na convicção de se tratar apenas de um sonho. Queria correr, mas tinha os ossos tão rígidos e frios que se sentia como que agarrada ao solo. A compacta onda de nevoeiro começou a recuar na direção da margem do rio. Ficou translúcida e depois rodopiou, à medida que era engolida pelas águas e desaparecia, levando o fantasma consigo. Moviam-se formas no nevoeiro, espessas, feitas do pó que ficara para trás, mas também estas foram sorvidas, num remoinho, para o fundo do rio, que por alguns momentos se transformou numa erupção de gelo e de fogo, para logo em seguida acalmar. A superfície ficou de novo branca e a manhã mortalmente sossegada.
Ingrid teria mesmo ficado convencida de que não passara de um sonho, não fosse o sangue, negro e pútrido, à volta da boca de Fergie, e o aspeto queimado da vegetação que ladeava o caminho. Mais tarde, na reunião semanal da Sociedade Poe, Astria concordou que a cena poderia ter sido real e que as criaturas de Poe existiam realmente neste mundo, tal como o outro Edgar, de certo modo semelhantes aos leões da ponte, que aguardavam o momento certo para atacarem.
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