Cadáveres Dizem Cada Coisa
Cadáveres Dizem Cada Coisa - Excerto Do Livro
Capítulo 1
Imagine, se puder, um detetive particular mais que acabado correndo rua abaixo atrás de um policial uniformizado o mais rápido que qualquer um de nós conseguia. É, nós éramos um achado.
Não que alguém desse a mínima. Na Cidade dos Ventos, como em qualquer outra metrópole com um milhão de pessoas passando a qualquer hora, poucos se davam ao trabalho de olhar e ninguém metia a mão. Não, irmãos e irmãs, eu estava por conta própria e dando tudo de mim atrás dele. Eu sou o detetive particular. Poderia descrever os sons, os cheiros. Poderia dar o nome das ruas, descrever as reviravoltas e as curvas, as pessoas que quase derrubamos, as coisas das quais desviamos, sobre as quais saltamos, os veículos que quase nos atropelaram. Mas pra quê? Nós corremos até eu ficar sem fôlego e desejar o mesmo para ele e pior. Nós corremos até ele cometer um erro.
Ele estava passando por duas prostitutas, uma loira magricela cujas raízes combinavam com suas botas de cano longo e uma bunduda alta da cor de chocolate amargo, vestida com lycra verde e dourado com listras de zebra, vadiando perto de um prédio abandonado na North Avenue quando gritou e virou em um beco que eu sabia não ter saída. O idiota. Assim como um sapo tem pernas deliciosas, eu tinha pego ele. Eu passei pelas moças trabalhadoras, rápido demais para prestar atenção, virei a esquina e quase bati numa caçamba de lixo que fedia como o inferno dos peixes na maré baixa. O homem de azul estava logo adiante. De uma das janelas abertas acima, como se fizesse a defesa dele, a Electric Light Orchestra implorava Don't Bring me Down. Nem aí pra isso. Sugando ar com o coração prestes a explodir, eu pulei e aterrissei nas costas dele.
Ele não podia simplesmente cair, é claro. Como a sorte não existe na minha vida e a boaventura não passa de uma fantasia, o tira escorregou e caiu. Eu rolei por cima dele e dei com tudo na calçada e, como eu ainda o segurava, ele retornou o favor. Lixo, jornais, cartolina e, sinto dizer, cascalho voaram. Eu apertei minha própria campainha em um inconvenientemente descartado bloco de concreto, usando a parte de trás do meu crânio como gongo. Um grito em conjunto, da nossa dor, minha raiva e o medo dele foi ao ar como uma nuvem de cogumelo. Antes que o barulho e a poeira baixassem e a despeito da minha visão borrada e do esfolado ensanguentado, eu me levantei rapidinho.
Ele também. E aí ele apanhou a arma no coldre da cintura.
“Willie”, eu gritei. Não tinha tempo para se pensar, só o suficiente para chutar o saco dele com força. Ele tombou como uma marionete com os fios cortados e se revirou no chão em posição fetal. “Sem armas, Willie. Nunca”, eu lati. “Eu odeio armas.
Aí, e só aí, eles deram as caras.
Por eles digo o Tenente-Detetive Frank Wenders e seu parceiro Detetive Dave Mason, mais duas fraudes que se passavam por tiras de verdade; essas pagas pelo município. Wenders, a alguns anos de sua aposentadoria, mas eras além de sua data de validade, pertencia a Nova Orleans e não a Chicago. Era feito para o Mardi Gras. Para ele, todo dia era terça-feira gorda e podia engolir um bolo rei inteiro sem nunca sentir o menino Jesus. Sua sombra pesava mais do que o seu parceiro. Falando no diabo, Mason, novo demais para sua promoção para fora da patrulha, não tinha falhado em tirar o pior dela. Não demorou nada para virar o mesmo tipo de babaca que Wenders era, só que mais burro. Juntos estavam sempre com um dia de atraso e um dólar faltando; duas pústulas constantemente me irritando.
“Você... está... bem, Blake?” Wenders perguntou. E eu pensei que eu estivesse sem ar. Estava ofegante como um cheirador de tinta. Eu assenti. (Tá bom, eu também estava exausto). Entre arfadas, eu apontei para o homenzinho de azul, ainda sofrendo no chão do beco, e disse aos garotos do município: “por uns trocados te digo onde ele conseguiu o uniforme. Ele tá melhor arrumado que vocês, pessoal.”
Wenders ficou boquiaberto diante do policial de mentira, encolhido como um bebê, segurando seu pacote com as duas mãos, chorando como um cachorro surrado e pareceu decidir que (tirando as meias brancas do Willie) ele não podia discordar da minha avaliação. O resto da fantasia parecia genuína. Ainda assim ele franziu o cenho. Aparentemente não precisava de um sabichão como eu lembrando ele disso.
Enquanto pudesseirritá-lo, eucontinuava. “Frank”, eu disse, pois o tenente adorava quando eu era amigável, “conheça Willie Banks. Willie’, eu disse para a lesma agonizante na calçada, “este é o Tenente-Detetive Wenders. Ele será o seu oficial de prisão desta manhã.” As orelhas do Wenders fumegavam. Aparentemente, ele também não precisava que eu o apresentasse para meliantes de quinta categoria como se fossemos todos convidados em uma festa de quintal. Ele me encarou com um olhar como um punhal e então disse para Mason, “Recolhe ele.”
O policial falseta foi sem resistência e só com um pouco de choro. O detetive, nem bem júnior, o seguia puxando as algemas e empurrando ele como se estivesse abaixo da humanidade. Assim que chegaram à boca do beco, em uma voz aguda e anasalada, Willie gritou por cima do ombro. “Blake, cuida do meu carro, tá?”
Aquilo não ajudou. Wenders olhou para mim como se eu fosse um inseto. Ele balançou a cabeça desanimado (mas não surpreso). Uma vida atrás, quando eu era um tira, o futuro tenente Wenders e o resto dos rapazes do distrito me fizeram passar por maus bocados por causa do meu hábito de acolher rapazes de rua. Meu coração, eu ouvia eles dizer, sangrava por um vagabundo atrás do outro. Não podia dizer que estavam errados e nem finjo que as coisas mudaram. As coisas nunca mudam.
Wenders viu a arma na calçada e grunhiu ao recolhê-la. Não sabia muito, mas sabia que não era dele. Sem pensar, ele ofereceu ela pra mim. “Sua?” Minha visão ainda estava voltando, minha cabeça ainda vibrava como um tambor e eu não estava disposto. Eu resmunguei e me virei como se a arma fedesse. Não dava pra evitar. Era automático, como o chutinho depois que um médico de araque bate no seu joelho com um martelo de borracha. Sabendo do que sabia, Wenders não podia me culpar. “Foi mal”, disse. “Deve ser dele, hã?” Ele enfiou a arma no cinto (um feito com a sua pança) e então deu outro golpe. “Sabe, Blake, você não é Broderick Crawford. Tu tem que parar de agir como um tira.”
Eu acendi um cigarro (o que, verdade seja dita, não me ajudou com a tontura) e soprei a fumaça na cara dele. “Você podia dizer, ‘Obrigado’”, eu disse, “por nos ajudar a pegar o cara.”
“Você não é mais um policial”, ele disse, fingindo não ter me ouvido. “Você não passa de um gumshoe de quinta categoria.”
Aquilo não foi legal, mas por outro lado, Wenders também não era. Ele girou sua massa e, seguindo Mason e seu prisioneiro policial de mentirinha, foi embora como o bovino que era. Sempre otimista, eu notei com gratidão que ele não tinha erguido a cauda. “Não há de que”, eu disse para as costas dele.
Existem três teorias sobre como o termo gumshoe virou um sinônimo de investigador particular. A primeira sugere que o termo foi um tributo à inquebrável aderência de um detetive. Como chiclete, não dá para se livrar de nós. A segunda diz que detetives particulares passam tanto tempo xeretando em vizinhanças ruins que eles terminam com chiclete no sapato. Embora nenhuma dessas seja completamente falsa, como origem da palavra elas são altamente suspeitas e provavelmente mal pensadas. A terceira teoria, a que se sustenta, se perguntar minha opinião, diz que o nome veio dos sapatos com sola de borracha usados no fim do século XIX. Eles tinham uma passada silenciosa e um gumshoe podia se esgueirar. Vinham a calhar se não quisesse ser detectado ou dar uma escapulida com as coisas de alguém porque, né, um gumshoe era um ladrão. Lá por 1910, mais ou menos, e não me pergunte como, não sou historiador, o termo cruzou para o outro lado da lei e dali em diante se referia aqueles que silenciosamente detectavam o crime.
Setenta anos depois (é em 1979 que te confesso isso), com o poder do sapato quase que completamente substituído por empresas de segurança de alta tecnologia, computadores pessoais, uma Fotomat em cada estacionamento, notícias 18 horas por dia e meia dúzia de agências de manutenção da lei com jurisdição concorrente sobre cada polegada dos EUA, o diligente detetive particular (e suas solas de borracha) tinham, como os efeitos especiais pré-Guerra nas Estrelas e ensaios fotográficos na sala dos fundos, seguido o caminho do dodô. Com a exceção, isso é, de mim.
Meu nome, como já ouviu, é Blake. Não me pergunte o primeiro nome. Pois é, eu tenho um. Não, eu não o uso; e não é porque eu quero parecer o tipão detetive particular. Aquele nome por si só prova que meus pais abusavam de crianças. Meu velho pagou por seus crimes eras atrás e está cumprindo sua sentença no cemitério municipal sem chance de condicional. Minha mãe, por outro lado, com o mundo tão cheio de salões de bingo e pessoas para irritar, continua conseguindo adiar a data do seu julgamento. Algum dia eu verei a justiça ser feita. Já falei o suficiente. Em uma Chicago moderna, cheia de agentes, tiras e tiras-de-aluguel, eu ainda sou só um detetive particular. Eu admito, eu passei da minha época. Conforme os anos 80 se aproximam e uma nova era empurra a velha colina abaixo, eu ainda fumo. Eu bebo antes, durante e depois do horário comercial. Ainda penso em mulheres como damas, embora raramente o diga em voz alta (por mais que eu frequentemente me meta em confusão, eu não estou necessariamente procurando por ela). E ainda visto solas de borracha. São silenciosas, tão confortáveis quanto pode se esperar para um trabalho no qual só não se está em pé quando se foi derrubado, e são úteis para aquelas horas em que uma lembrança fora de forma e de meia idade de uma era passada do trabalho de detetive nas duras ruas precisa andar rápido, como naquela manhã.
Eu sai do beco, lenta e dolorosamente, mas fui interrompido pela prostituta loirinha antes de chegar à calçada. “Ei, Blake”, ela exclamou. “Pensei que fosse você que eu vi correndo.” Ela tremia com Howdy Doody, espasmos musculares involuntários que anunciavam seu vício. Maldita droga. Subitamente, me bateu e eu poderia ter me chutado. Eu conhecia a garota. Conhecia ela bem, mas não a reconheci por causa do inferno que as ruas estavam fazendo com ela. Ainda estava no começo dos vinte, mas não se passaria nem por quarenta.
“Cê tá horrível”, eu disse pra ela.
Ela olhou para mim com seus enormes olhos de corça e eu só consigo imaginar o que ela via daquele lado: uma barriga crescente, cabelo grisalho ralo, um conjunto de roupas datadas sujas e ensanguentadas penduradas em um maltrapilho ex-policial cabeça dura que agora era... O que eu era? “Tá achando que é o Gregory Peck?” ela perguntou. “Andou se olhando no espelho recentemente?”
Eu entendi a deixa e mudei de assunto. “Tem comido?”
“Eu me viro”, ela disse com um tremor.
Eu tirei uma nota de vinte do meu bolso e a botei em sua mão trêmula. “Não vá fumar isso”, eu disse. “Compre um pouco de comida.” Ela assentiu sem me olhar nos olhos.
“Ei, Charisma!” O grito veio da outra garota, sua mais volumosa e mais chamativa colega de trabalho, que movera seu ponto de rameiragem para esquina do outro lado da rua. “Quem é o namorado?”
Eu olhei da escandalosa ao longe para a pombinha suja ao meu lado. “Charisma?”
“Eu encontrei um livro de nomes na biblioteca”, ela disse, dando de ombros. “Eu estou experimentando.”
“Tá bom. Mas ainda vou te chamar de Connie.”
Ela me deu um beijinho na bochecha, se virou e, zigueando enquanto o trânsito zagueava, voltou para junto de sua amiga gritando “Te amo” por cima do ombro enquanto ia.
Enquanto eu a observava, magra e comida pelas ruas, voltando ao inferno que compunha sua existência, eu balançava a cabeça e pensava em quão ruim a vida podia ser. Aquilo levou a pensar sobre a semana de merda que eu tinha até aquele ponto e no quão bacana aquela manhã tinha sido. Como a maioria das ruminações sobre o passado, estes pensamentos não mudavam em nada o presente e não me deixavam a par de dois fatos vitais: Primeiro, que embora eu não tivesse me ferido fatalmente, a porrada na cabeça que eu tinha acabado de levar era a primeira de várias que estavam por vir pelos próximos onze dias, que afetariam meu cérebro permanentemente e mudariam completamente o meu futuro. E segundo, que uma semana antes, quase com um minuto de precisão, um portão fortemente protegido na prisão de Stateville perto de Joliet havia se aberto e vomitado meu pior pesadelo.
Capítulo 2
Fumaça emergia do escapamento do velho Ford de Willie Banks em grandes redemoinhos cinzentos enquanto eu o estacionava fora do meu escritório. Acho que eu devia ser grato. Com os pneus carecas, o farol esquerdo destroçado e o painel traseiro esquerdo verde e amassado, que destacava o chassi Laranja Madagascar desbotado original do Mustang junto com o direito, azul e enferrujado, eu podia muito bem estar empurrando-o. Com as coisas que eu deixava que fizessem, um trouxa como eu devia ter um anzol na boca.
De qualquer maneira em algum lugar atrás da fumaça estava o pequeno prédio de tijolos com dois andares que eu alugava, e às vezes pagava o aluguel, perto da zona sudoeste, o antigo comitê de campanha de algum candidato a alguma coisa. Ele contava com uma entrada pequena demais para se mudar de ideia, um escritório externo para a minha secretária, um escritório interno onde eu pensava nas grandes coisas, me encontrava com clientes e me escondia de cobradores, e uma sala que cobria todo o segundo andar, cheia de caixas de tranqueiras há muito esquecidas. Algum dia eu vou contratar um detetive só pra ver o que tem lá.
Embora eu tivesse desligado ele, o carro do Willie continuava a tossir. Enfim o motor deu uma última grande arfada e estremeceu até a inatividade. Eu suspirei, peguei um envelope no assento ao meu lado e, tão surrado quanto o tapete da vovó, entrei.
Lisa estava à mesa. Aquela era Lisa Solomon, minha secretária. De pé era uma morena alta leve como um copo d’água. Sentada ou de pé, tinha o brilhantismo da luz, a eficiência de uma máquina bem engraxada e era quase tão desajeitada quanto era linda. Como de costume, uma mão longa e ossuda escrevia loucamente na pilha de papéis em cima de sua mesa enquanto a outra cavava tão loucamente quanto em um pacote de balinhas da Five and Dime. Uma vez eu vi Lisa quando ela não estava comendo; uma vez. Como ela se mantinha tão magra era um dos grandes mistérios do mundo. Ela ergueu o olhar quando eu entrei, sem nenhuma expressão perceptível por trás de seus grandes óculos de coruja, mas disse, “Você parece um monte de carne moída de primeira.”
Eu dei ao comentário a consideração que ele merecia, isso é, o ignorei. “Willie Banks está no xilindró”, eu disse para ela. “Se a mãe dele quer ele livre, e eu presumo que isso seja um grande se, devíamos informá-la.” Eu entreguei o envelope para ela. “Adicione isso à conta e lembre-a de que não aceitamos cheques.” Eu joguei as chaves dele na mesa. “São do Willie, para aquela lata velha que está diminuindo os valores das propriedades lá fora.”
“Era isso o alvoroço?” Ela olhou de relance para a janela. “Eu pensei que tivessem reativado o trem fantasma de Sydney.”
Eu ignorei aquilo também. “Pergunte o que ela quer que seja feito com isso. Eu vou pra casa e...”
Que belo detetive que eu era. Foi só aí que, pelo canto do olho, eu vi a loira sentada de pernas cruzadas em uma das duas cadeiras da minha sala de espera. A cadeira nunca teve tanta sorte e meus olhos também estavam apreciando o dia um pouco mais. Se Lisa era linda, mas desajeitada, essa dama era só linda. Ela sorriu e o que mais eu podia fazer além de retribuir o sorriso? Sua elegante - se um tanto profissional - combinação de saia e terno, em um amarelo-canário suave, merecia atenção que eu não conseguia prover porque suas pernas estavam monopolizando o palco. Aí ela se levantou e, como se já não tivessem causado problemas o bastante, as pernas fizeram questão de se exibir. Fora do meu dolorido crânio eu ouvi Lisa murmurar “Huh?”
“Eu disse”, disse Lisa, “esta é Gina Bridges.”
“Blake”, disse eu, pegando a mão dela. Eu indiquei a porta do meu escritório com a minha mão livre. “Por favor.” Ela seguiu as instruções sem esforço e eu empolgadamente a segui. Por trás de mim, com a voz abafada, eu podia jurar que ouvi Lisa perguntar, “Quem você pensa que é, William Holden?”. Ignorei isso também.
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